domingo, 17 de agosto de 2014

A VIDA ATRAVÉS DA PORTA DE VIDRO

A sala do apartamento comunicava-se com a sacada, que alguns chamam de varanda, que dava no nada, com limite em uma grade metálica de bom gosto. Entre os dois compartimentos, sala e varanda, uma porta de vidro e alumínio, que corria sobre trilhos. Dali, eu via a metade do mundo, porque não havia nenhum outro prédio alto nas imediações, que pudesse obstar a visão universal que terminava, em cima, no céu quase sempre azul, e em baixo, nas colinas distantes limitadas bem ao fundo, pelo contorno da Serra da Mantiqueira. Que cenário lindo pra quem gosta de ver o nada de vez quando, relaxar a mente, e descontrair a alma!
Naquele dia, eu acordei muito cedo e não conseguia dormir de novo, ainda que tentasse. Rolei na cama até que decidi tomar um pouco de água na cozinha, que também se avizinhava da sala. Com o copo na mão andei até bem próximo da porta de vidro da sala, e comecei a olhar os prédios que não eram vizinhos, mas a uma certa distância, podiam ser vistos com pouca nitidez, é lógico. Da água e do copo eu esqueci por algum tempo, que não sei precisar, enquanto olhava a noite se despedindo e o dia começando a dar os seus sinais de vida. Clareava lentamente. São José dos Campos à, época, ainda era uma cidade cuja principal atividade econômica era a indústria que começava a mostrar sinais de senilidade. Era o momento em que o Brasil começava a ficar para trás em matéria de eficiência produtiva industrial. Sendo esse o principal seguimento gerador de empregos, as pessoas costumavam levantar bem cedo para se dirigirem aos seus postos de trabalho, e já dizia o velho adágio: “A quem madruga, Deus ajuda”. As fábricas iniciavam bem cedo a movimentação de suas máquinas. Por volta de sete da manhã era o horário mais comum. A empresas costumavam manter sistema de transporte exclusivo para os seus empregados, através de empresas que não eram as mesmas que operavam transporte coletivo público. Era uma forma de garantir a pontualidade. Certamente, grande parte das pessoas que ascendiam e apagavam aquelas lâmpadas estariam, daí a pouco, dentro dos ônibus e em seguida colocariam em movimento os gigantes que impulsionavam a economia da região.
Permaneci paralisado com o copo de água na mão, e percebi ao longe ascender a janela de um apartamento, alguns segundos mais tarde, uma outra lá no outro prédio de fachada branca e azul, no cinza ascendeu mais uma janela, pouco depois a primeira janela se apagou e no mesmo apartamento ascendeu a outra, talvez do banheiro. Enquanto olhava o espetáculo das luzes, eu pensava no que poderia representar o papel de cada indivíduo que acionava aqueles interruptores que ascendiam e apagavam as misteriosas lâmpadas de coloração às vezes amareladas, as incandescentes que estavam em extinção, noutras vezes as de cor mais clara, a lâmpadas frias que começavam a substituir as velhas, e pensava, pensava, no que iriam fazer aquelas pessoas que às cinco da manhã saiam da cama tomavam banho, vestiam-se à caráter, tudo bem rapidamente para não perderem a condução, e iam, todos os dias, ao mesmo local, à mesma cadeira, à mesma rotina de trabalho, tudo repetidamente igual a todos os dias que ficaram para trás. A secretária seria uma daquelas pessoas que se fazem bonitas e perfumadas porque secretária tem que compor o ambiente. Será que o chefe daquela pessoa da primeira janela merece tanto capricho, pensei. E se ele for do tipo chato como os que fazem da secretária a solução das suas frustações particulares? Será que ela vai feliz para o trabalho ou já vai com vontade de voltar pra casa? E a pessoa da segunda janela, será o gerente que não consegue cobrir as metas e vive sendo cobrado, estressado e inseguro? Ele tem família e precisa do trabalho, tem que aguentar a pressão. Aquela pessoa da janela lá do fundo, que ascendeu e apagou rapidamente pode ser o chefe que está sendo processado por assédio sexual, acusação feita pela ex-secretária e anda preocupado, mas tem que suportar a pressão, se não vai perder o emprego. Enquanto eu pensava nas vidas que estavam por detrás das lâmpadas que ascendiam e apagavam, ali parado com o copo de água na mão, ascendeu uma janela de um prédio bem maior com apartamentos aparentemente mais confortáveis, e eu supus que aquele era um patrão, dono de alguma empresa de muitos empregados, que acordava um pouco mais tarde porque era o dono. Uma vida farta de bens, e de muitas preocupações, com a economia que oscilava e gerava insegurança, ou com os recebimentos de dinheiro para cumprir tantos compromissos. Enfim era o dono, e afinal, dono é dono. E lá se foi ele sem sequer imaginar que eu o seguia no meu imaginário até que um carro grande e brilhante deixou a garagem do prédio, e deu pra ver que era alguém importante porque a luz do dia já era plena.
Voltei à cozinha, tomei toda a água do copo, e ao fazer uma analogia utópica entre as lâmpadas e as pessoas, suas obrigações profissionais, as disputas por cargos ou por mercados, e fui “viajando”, “viajando”, pra chegar a um diagnóstico sobre o espetáculo que acabava de assistir: O homem moderno não sabe o que fazer da vida. Quando jovem trabalha pra ganhar dinheiro e fazer patrimônio, depois trabalha para manter o patrimônio e no fim da vida não consegue aproveitar o que fez porque não têm saúde e nem disposição.
Parafraseando Dalai Lama:
“Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde.
E por pensarem ansiosamente no futuro esquecem do presente de forma que acabam por não viver nem no presente nem no futuro. E vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem vivido.”
Encontrei por acaso aquele senhor do carro bonito em uma sala de espera de um médico em que fui levar uma pessoa da minha família, e na sala de espera conversamos bastante até que descobri quem era ele. Era um empresário do ramo de transportes, que já idoso ainda trabalhava porque não conseguia imaginar-se aposentado. Não adquiriu cultura, porque tinha que fazer fortuna, e agora, sem cultura, não consegue enxergar os lados bonitos da vida, como o das artes, da literatura, da boa música e sem isso falta-lhe sensibilidade para conhecer lugares e pessoas e conhecer o lado humanístico da vida. Não tem o que fazer da vida e nem da fortuna, e o pior, está preocupado com o que vão fazer do seu império que será herdado.
Do outro lado, a secretária que ganhava bom salário ainda que fosse chato o seu trabalho, irá, certamente, aposentar-se e passar o resto da vida reclamando do valor da sua aposentadoria.
Estava certo o Niemayer quando colocou em seu escritório de arquitetura, um professor de filosofia para dar aulas aos seus funcionários. Perguntado sobre isso ele respondeu: “O arquiteto e o engenheiro, não devem saber somente calcular e construir casas e pontes. Eles precisam saber o que fazer da própria vida”.
As janelas vão continuar ascendendo e apagando em todas as manhãs, até que a luz que as ilumina, consiga clarear a mente das pessoas e induzi-las à busca do autoconhecimento, e à construção de um mundo mais humanizado, que lhes confortará no fim da vida.

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