A sala do apartamento
comunicava-se com a sacada, que alguns chamam de varanda, que dava no nada, com
limite em uma grade metálica de bom gosto. Entre os dois compartimentos, sala e
varanda, uma porta de vidro e alumínio, que corria sobre trilhos. Dali, eu via
a metade do mundo, porque não havia nenhum outro prédio alto nas imediações,
que pudesse obstar a visão universal que terminava, em cima, no céu quase
sempre azul, e em baixo, nas colinas distantes limitadas bem ao fundo, pelo contorno
da Serra da Mantiqueira. Que cenário lindo pra quem gosta de ver o nada de vez
quando, relaxar a mente, e descontrair a alma!
Naquele dia, eu acordei muito
cedo e não conseguia dormir de novo, ainda que tentasse. Rolei na cama até que decidi
tomar um pouco de água na cozinha, que também se avizinhava da sala. Com o copo
na mão andei até bem próximo da porta de vidro da sala, e comecei a olhar os
prédios que não eram vizinhos, mas a uma certa distância, podiam ser vistos com
pouca nitidez, é lógico. Da água e do copo eu esqueci por algum tempo, que não
sei precisar, enquanto olhava a noite se despedindo e o dia começando a dar os
seus sinais de vida. Clareava lentamente. São José dos Campos à, época, ainda
era uma cidade cuja principal atividade econômica era a indústria que começava
a mostrar sinais de senilidade. Era o momento em que o Brasil começava a ficar
para trás em matéria de eficiência produtiva industrial. Sendo esse o principal
seguimento gerador de empregos, as pessoas costumavam levantar bem cedo para se
dirigirem aos seus postos de trabalho, e já dizia o velho adágio: “A quem
madruga, Deus ajuda”. As fábricas iniciavam bem cedo a movimentação de suas
máquinas. Por volta de sete da manhã era o horário mais comum. A empresas
costumavam manter sistema de transporte exclusivo para os seus empregados,
através de empresas que não eram as mesmas que operavam transporte coletivo
público. Era uma forma de garantir a pontualidade. Certamente, grande parte das
pessoas que ascendiam e apagavam aquelas lâmpadas estariam, daí a pouco, dentro
dos ônibus e em seguida colocariam em movimento os gigantes que impulsionavam a
economia da região.
Permaneci paralisado com o copo
de água na mão, e percebi ao longe ascender a janela de um apartamento, alguns
segundos mais tarde, uma outra lá no outro prédio de fachada branca e azul, no
cinza ascendeu mais uma janela, pouco depois a primeira janela se apagou e no
mesmo apartamento ascendeu a outra, talvez do banheiro. Enquanto olhava o
espetáculo das luzes, eu pensava no que poderia representar o papel de cada
indivíduo que acionava aqueles interruptores que ascendiam e apagavam as
misteriosas lâmpadas de coloração às vezes amareladas, as incandescentes que
estavam em extinção, noutras vezes as de cor mais clara, a lâmpadas frias que
começavam a substituir as velhas, e pensava, pensava, no que iriam fazer
aquelas pessoas que às cinco da manhã saiam da cama tomavam banho, vestiam-se à
caráter, tudo bem rapidamente para não perderem a condução, e iam, todos os
dias, ao mesmo local, à mesma cadeira, à mesma rotina de trabalho, tudo
repetidamente igual a todos os dias que ficaram para trás. A secretária seria
uma daquelas pessoas que se fazem bonitas e perfumadas porque secretária tem
que compor o ambiente. Será que o chefe daquela pessoa da primeira janela
merece tanto capricho, pensei. E se ele for do tipo chato como os que fazem da
secretária a solução das suas frustações particulares? Será que ela vai feliz
para o trabalho ou já vai com vontade de voltar pra casa? E a pessoa da segunda
janela, será o gerente que não consegue cobrir as metas e vive sendo cobrado,
estressado e inseguro? Ele tem família e precisa do trabalho, tem que aguentar
a pressão. Aquela pessoa da janela lá do fundo, que ascendeu e apagou
rapidamente pode ser o chefe que está sendo processado por assédio sexual,
acusação feita pela ex-secretária e anda preocupado, mas tem que suportar a
pressão, se não vai perder o emprego. Enquanto eu pensava nas vidas que estavam
por detrás das lâmpadas que ascendiam e apagavam, ali parado com o copo de água
na mão, ascendeu uma janela de um prédio bem maior com apartamentos
aparentemente mais confortáveis, e eu supus que aquele era um patrão, dono de
alguma empresa de muitos empregados, que acordava um pouco mais tarde porque
era o dono. Uma vida farta de bens, e de muitas preocupações, com a economia
que oscilava e gerava insegurança, ou com os recebimentos de dinheiro para
cumprir tantos compromissos. Enfim era o dono, e afinal, dono é dono. E lá se
foi ele sem sequer imaginar que eu o seguia no meu imaginário até que um carro
grande e brilhante deixou a garagem do prédio, e deu pra ver que era alguém
importante porque a luz do dia já era plena.
Voltei à cozinha, tomei toda a
água do copo, e ao fazer uma analogia utópica entre as lâmpadas e as pessoas,
suas obrigações profissionais, as disputas por cargos ou por mercados, e fui “viajando”,
“viajando”, pra chegar a um diagnóstico sobre o espetáculo que acabava de
assistir: O homem moderno não sabe o que fazer da vida. Quando jovem trabalha pra
ganhar dinheiro e fazer patrimônio, depois trabalha para manter o patrimônio e
no fim da vida não consegue aproveitar o que fez porque não têm saúde e nem
disposição.
Parafraseando Dalai Lama:
“Os homens
perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem o dinheiro para recuperar a
saúde.
E por pensarem ansiosamente no futuro esquecem do presente de forma que acabam por não viver nem no presente nem no futuro. E vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem vivido.”
E por pensarem ansiosamente no futuro esquecem do presente de forma que acabam por não viver nem no presente nem no futuro. E vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem vivido.”
Encontrei por acaso aquele senhor
do carro bonito em uma sala de espera de um médico em que fui levar uma pessoa
da minha família, e na sala de espera conversamos bastante até que descobri
quem era ele. Era um empresário do ramo de transportes, que já idoso ainda
trabalhava porque não conseguia imaginar-se aposentado. Não adquiriu cultura,
porque tinha que fazer fortuna, e agora, sem cultura, não consegue enxergar os lados
bonitos da vida, como o das artes, da literatura, da boa música e sem isso
falta-lhe sensibilidade para conhecer lugares e pessoas e conhecer o lado humanístico
da vida. Não tem o que fazer da vida e nem da fortuna, e o pior, está
preocupado com o que vão fazer do seu império que será herdado.
Do outro lado, a secretária que
ganhava bom salário ainda que fosse chato o seu trabalho, irá, certamente,
aposentar-se e passar o resto da vida reclamando do valor da sua aposentadoria.
Estava certo o Niemayer quando
colocou em seu escritório de arquitetura, um professor de filosofia para dar
aulas aos seus funcionários. Perguntado sobre isso ele respondeu: “O arquiteto
e o engenheiro, não devem saber somente calcular e construir casas e pontes.
Eles precisam saber o que fazer da própria vida”.
As janelas vão continuar ascendendo e apagando
em todas as manhãs, até que a luz que as ilumina, consiga clarear a mente das
pessoas e induzi-las à busca do autoconhecimento, e à construção de um mundo mais humanizado, que lhes confortará no fim da vida.
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